quarta-feira, 22 de julho de 2009

Corpografia, a Escrita Gestual na Cidade


Corpografia, a Escrita Gestual na Cidade[1]

Para Milton Santos na grande cidade, hoje, o que se dá é tudo ao contrário.

"Quem na cidade tem mobilidade – e pode percorrê-la e esquadrilhá-la – acaba por ver pouco, da cidade e do mundo. Sua comunhão com as imagens freqüentemente pré-fabricadas, é a sua perdição. Seu conforto que não desejam perder vem exatamente dessas imagens. Os homens “lentos’, para quem tais imagens são miragens, não podem, por muito tempo, estar em fase com esse imaginário perverso e acabam descobrindo as fabulações". (Santos apud Jacques, P. 1998, p: 134).


Os “homens lentos” que Milton Santos se refere, não estão motorizados, caminham a pé pela cidade. Em vez de se deslocarem de um ponto a outro, velozmente de automóvel, percorre inúmeros pontos, conhecidos e desconhecidos, praticando a cidade também de forma diferente daquela programada para a circulação comercial. Para Certeau o simples caminhar do pedestre sugere um “espaço de enunciação”, ele define o espaço como um “lugar praticado”[2]. (Certeau apud Pallamin, V. 2000, p: 38).
O pedestre, quando cria desvios em seu caminhar, transgride e atualiza alguns usos do espaço público, também o artista de rua está ligado a este lado transgressor ou clandestino da vida social urbana, uma resultante que implica enfrentamentos constantes. Florianópolis transformou-se na cidade das vias rápidas, como tantas outras cidades, condicionado os usos dos espaços públicos que refletem a predisposição pragmática de uma cidade. É na rua que o artista performático realiza suas atuações, são pequenos enredos encenados através da gestualidade, em que revelam atos corporais e visuais, nos quais os movimentos do corpo elaboram uma estética urbana rica, uma forma de compor o social contemporâneo.
O artista se oferece como obra pública, realizando uma escrita corpórea que desbanaliza o cotidiano da cidade. “A vida cotidiana começa a nascer quando as ações e relações sociais já não se relacionam com a necessidade e a possibilidade de compreendê-las, ainda que por meio místicos ou religiosos; quando o resultado do que se faz não é necessariamente produto do que se quer ou do que se pensa ter feito”. O trabalho alienado, segundo Marx, é ato fundante da vida cotidiana. (Martins apud Pallamin, V. 2000, p: 43).
O malabarismo com fogo, à noite, desenha o céu de Florianópolis de forma cortante e visceral. O corpo, nesse ato, é instrumento material desse tipo de arte que também é uma inscrição, uma escrita composta de gesto, som, cor, forma, calor. Mas é necessário um olhar sensível do espectador, para a escrita produzida pelo corpo no espaço urbano, e a percepção desse feito não é exclusivamente visual, ao contrário, mobilizam os órgãos dos sentidos, conduzindo-nos através da visão, da audição, do olfato e do tato. Perceber estes atos demanda um exercício de alteridade. Mesmo sendo um ato voluntário, nem sempre é bem recebido pelas pessoas motorizadas e condicionadas na obrigatoriedade dos usos programados pela cidade. É preciso que haja envolvimento entre o ato de escrever e o ato de perceber as escritas corporais no mundo urbano. Para perceber a escrita feita pelo corpo que se desloca dentro da cidade, há necessidade de uma revolução no olhar.
Laplantine cita Merleau-Ponty, o qual “em ruptura com nossa tradição intelectual da representação, mostra até que ponto o olhar corresponde ao olhar do corpo, envolvendo o corpo inteiro, completando-se a partir dele.” Define de modo sutil e metafórico o encontro entre o observador com o que é observado: “nós construímos o que olhamos à medida que aquilo que olhamos nos constitui, nos afeta e acaba por nos transformar (...)”, e sintetiza: “tudo isso é possível a partir da revolução do olhar[3].” (Laplantine, F 1996).
A revolução do olhar para romper com o condicionamento e perceber o inusitado faz-se necessário. Olhar o outro é fundamental neste processo, pois o olhar que desconsidera a experiência do outro, trata-se de um olhar condicionado, estéril, improdutivo.
Nesta medida a cidade, pode ser lida pelo corpo e o corpo escreve o que segundo Guez, poderíamos chamar de corpografia[4], trata-se do desenho dos corpos no corpo urbano e social. A palavra grafia vem do verbo grego grapho, que significa arranhar, traçar linhas, escrever, assim, está em jogo uma escritura do corpo na cidade, “que seria a memória urbana no corpo, o registro de sua experiência da cidade”. (JACQUES, P.1998, p:134).


[1] Giovana Zimermann
[2] Nessas práticas, Certeau também inclui os discursos relacionados a estes espaços (dentre os quais as “histórias espaciais”, isto é, narrativas dos usuários envolvem tais espaços). Paola Berensten. Corpos e Cenários Urbanos Territórios urbanos e políticas culturais. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 1998, p:119.
[3] “Paradoxalmente, o retorno do observador ao campo de observação, não se efetua pela via das ciências humanas, nem mesmo pela filosofia, mas pelo viés da física moderna que reintegra a reflexão sobre o sujeito da atividade perceptiva, como condição de possibilidade da própria atividade científica. Heisenberg mostrou que não se pode observar um elétron sem criar uma situação que o modifique. Em 1927 ele criou seu famoso princípio da incerteza”.[3] (LAPLANTINE, F.1996.p:128)
[4] Termo que foi proposto por Alain Guez Durante o Seminário de preparação ao colóquio “L´habitar dans as poétique première”. (EHESS – Paris, 2005/Cerisyla-Salle, 2006)

Nenhum comentário:

Postar um comentário