“Que pretendem dizer os monumentos dentro da
simbologia urbana contemporânea?” Canclini
Quando estudei a
Praça XV, busquei investigar o caráter simbólico do monumento, sua gênese
crítica e seu papel no desenvolvimento urbano de Florianópolis, isto é, buscar
compreender o que a estratégia de edificações de monumentos significou no
período e o que significa na atualidade. As memórias afirmadas no espaço
público foram quase sempre “forjadas” por interesses hegemônicos, citando o
antropólogo Néstor Canclini: “As relações
entre governo e povo consistem na encenação do que se supõe ser patrimônio
definitivo da nação. Lugares históricos e praças, palácios e igrejas servem de
palco para representar o destino nacional, traçado desde a origem dos tempos”.
No caso dos bustos da
Praça XV de Novembro a finalidade foi exaltar
a República, uma iniciativa de José Boiteux, que segundo Celso Martins foi um “semeador de estátuas”. A
disposição dos bustos obedecia a uma simetria rígida, quase militar. Ladeando o
Monumento aos Voluntários da Guerra do Paraguai (uma casa impenetrável, sem
portas nem janelas), estavam dispostos os bustos de Cruz e Sousa, Victor
Meirelles, Jerônimo Coelho e José Boiteux. No ano de 2009 a herma do jornalista Jerônimo Coelho foi deslocada do ponto
original em direção ao limite do jardim, recebeu uma plataforma de granito
estrategicamente emoldurada por duas palmeiras adultas; sua visibilidade
noturna também foi favorecida por dois holofotes. Apesar de a linguagem
dos monumentos não estabelecer mais uma referência direta com a população como
no passado, a estratégia denota um investimento na manutenção do
funcionamento do jogo político.
Mas a resistência
frente às imposições da memória faz parte da história de Santa Catarina.
Refiro-me ao episódio de 30 de novembro de 1979: o protesto pacífico de
estudantes universitários contra a inauguração da placa em homenagem a Floriano
Peixoto, alusiva aos 90 anos da República, que seria inaugurada na Praça XV de
Novembro, durante a visita do então Presidente da República, o General João
Baptista Figueiredo. Um protesto que acaba por se transformar em uma revolta
popular que ficou conhecida como Novembrada. Como arquivo da memória, o
episódio político motivou a produção de um curta-metragem ficcional em 1998,
intitulado Novembrada, dirigido por
Eduardo Paredes.
A Praça XV de Novembro é feita de
dobras, de camadas diversas, é um microterritório, político, sagrado e
profano. Também um campo de pesquisa para a Arte Pública contemporânea que está
para além das formas instituídas de representação do poder: e que chamei “arte
pública no campo da possibilidade”.
Alguns importantes nomes, tais como: Cruz e Sousa, Victor Meirelles, Francklin
Cascaes e Hassis aparecem no trabalho, potencializando as manifestações
artísticas na cidade que convergem para a praça, atualizando-a como cenário da
arte contemporânea e afirmando a sua presença urbanística como palco dos
encontros que estão ao limiar da arte/ação/sociedade.
A cidade é o cenário
onde os fenômenos estéticos são reatualizados constantemente, aparecendo novas
estratégicas de atuações artísticas, de raiz ativista e performativa, que
aspiram a influenciar politicamente o espaço sociológico da cidade. Pode ser interessante
investir em novos olhares sobre as personalidades ou até mesmo sobre o fato
ocorrido – o furto dos bustos de Jerônimo Coelho, Victor Meirelles, Cruz e
Sousa e José Boiteux. Antes de
sairmos todos atrás do bárbaro, é importante pensar no que está por traz do
ato, que é no mínimo o sintoma social de “não pertencimento”.
O episódio é
percebido como algo que está fora do mundo civilizado, mas é justamente o
espelho da civilização que não quer ver os excluídos, os que não têm cidadania.
“Sem bárbaros o que será de nós? Ah! eles
eram uma solução” (Kaváfis, Antes de 1911). O que proponho não se trata de
higienização, de simplesmente ordenar o espaço público, essa estratégia já ocorreu quando o Jardim Oliveira Belo
foi inaugurado no dia 6
de abril de 1891.
Hoje a disciplinarização aparecem de outra forma, na cidade contemporânea a vigilância
é eletrônica, mas as câmeras de segurança da praça resultaram ineficientes.
Em Sujeitos suspeitos, imagens suspeitas:
Cultura Midiática e Câmera de Vigilância, Aglair Bernardo comenta que
quando analisava as imagens das câmeras de vigilância, se sentia atraída pelos
vazios urbanos, pelas formas abstratas, pelos tons acinzentados que se expandiam
nas telas. Inicialmente era uma observação formal e estética, mas passa por uma
reflexão contextual, ainda que artística do pathos
trágico. Em suas palavras, “aquelas mesmas imagens, que poderiam estar
expostas em qualquer galeria de arte, não foram resultados de um gesto
artístico, mas sim foram estrategicamente construídas por um outro tipo de
olhar que entendia que naqueles pequenos trechos um crime poderia ocorrer”.
De fato, os bárbaros chegaram. Em 22 de agosto de 2008, ocorreu um assassinato
na Praça XV de Novembro, segundo o registro das câmeras de vigilância da
Polícia Militar, os disparos foram feito por dois jovens de 15 e 17 anos e aconteceram
às 13h07 min.
Concluímos que abordar
o espaço público é abordar a diversidade, ou seja, as implicações sociológicas
que ele compreende. Falar da memória no espaço público não reside em menor complexidade,
as práticas memorialísticas precisam tomar como ponto de partida o conjunto das
relações humanas em seu contexto social. As pessoas são testemunhas dos fatos
sociais e esses, por sua vez, dependem das versões e dos olhares humanos para
se configurarem como tais, em certo tempo e lugar. Por respeitar o patrimônio
histórico é que acredito não fazer sentido colocar novos bustos, repetir uma
estratégia que não estabelece mais uma referência direta com a população. De
certa forma, a arte em alguma instância estará sempre se reportando ao passado,
no entanto, esse exercício precisa ser atualizado com a linguagem e com
técnicas que estabeleçam uma relação mais coerente com as pessoas, no espaço e
tempo em que elas vivem e que irá garantir a conexão do passado para se pensar
o presente. Que outro objetivo poderia existir?
Giovana Zimermann
Artista Visual e mestre em Arquitetura
e Urbanismo pela UFSC.
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